sábado, 27 de junho de 2015

A engenharia celular e a remontagem do corpo humano

Órgãos sob medida
Células-tronco ajudam a produzir traqueias e vasos sanguíneos para transplante com menor risco de rejeição
PABLO NOGUEIRA | ED. 232 | JUNHO 2015 - REVISTA FAPESP







Imagine uma reforma de casa tão radical que inclua a remoção da pintura e do reboco das paredes, deixando desnudos os tijolos que formam a sua estrutura. Essa metáfora é útil para entender os projetos em andamento no Laboratório de Engenharia Celular (LEC) coordenado pela hematologista e hemoterapeuta Elenice Deffune na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu. Em vez de tinta e cimento, o trabalho dos pesquisadores envolve a remoção das células que recobrem estruturas ocas do corpo, como a traqueia e os vasos sanguíneos. Esse procedimento, conhecido como descelularização, é o primeiro passo de uma transformação mais ampla: a produção de órgãos e tecidos de reposição formados por células com as características genéticas do receptor. 

Usando essa estratégia, o cirurgião vascular Matheus Bertanha está desenvolvendo no LEC uma possível alternativa terapêutica para os problemas circulatórios gerados pela aterosclerose. Na aterosclerose, placas de gordura e cálcio se acumulam no interior das paredes das artérias e obstruem, ainda que parcialmente, a passagem do sangue. Quando esse bloqueio é grave a ponto de causar sintomas, o tratamento envolve procedimentos cirúrgicos para restaurar a circulação. Nos casos mais radicais, implanta-se um segmento de artéria ou de veia retirado de outra parte do corpo do próprio indivíduo, criando um desvio – ou uma ponte – que restabelece o fluxo sanguíneo normal. É o que geralmente fazem os cirurgiões cardíacos ao implantar um segmento da veia safena, extraído da perna, no coração de quem tem as artérias coronárias obstruídas. Algo semelhante é feito pelos cirurgiões vasculares para tratar bloqueios em artérias das pernas.
Nem sempre, no entanto, é possível realizar esse procedimento. Segundo dados da literatura médica, 30% dos pacientes que necessitam de enxerto para a confecção de pontes coronarianas não possuem vasos com as características adequadas para essa função. Estima-se ainda, conta Bertanha, que uma em cada 10 pessoas com indicação para receber enxertos vasculares nos membros inferiores enfrente o mesmo problema. “Alguns possuem veias com menos de 2,5 milímetros de diâmetro, o que impede a sua utilização”, explica. “Outras pessoas já estão na segunda ponte e não têm mais vasos disponíveis”, diz. Nesses casos, uma saída é usar uma ponte artificial, feita de material sintético. Mas elas podem ter uma vida útil curta porque sofrem obstrução mais facilmente. Outra possibilidade é obter vasos de doadores vivos, o que nem sempre é viável por causa da incompatibilidade imunológica, que pode levar à rejeição do implante.
Bertanha trabalha numa alternativa, ainda experimental, para tentar superar a falta de vasos do próprio indivíduo e o risco de obstrução dos materiais sintéticos. Em testes com coelhos, ele primeiro extrai vasos naturais – mais especificamente veias – de um animal doador. Depois, o segmento a ser transplantado para outro animal passa por um banho químico com detergentes que eliminam as células das paredes do vaso. O objetivo desse processo de descelularização é evitar que o corpo do receptor desencadeie uma agressão contra o órgão implantado. O que sobra desse processo é uma estrutura tubular – um arcabouço – composta por fibras de colágeno, a proteína formadora dos tecidos de sustentação do corpo.
Em seguida, o pesquisador semeia no interior do vaso um tipo especial de célula retirada do corpo do receptor: as células-tronco mesenquimais. Extraídas do tecido adiposo do animal que vai receber o transplante, essas células são capazes de se converter em células típicas dos vasos sanguíneos. Elas são cultivadas em laboratório até atingirem a quantidade esperada – cerca de 100 mil células para o experimento em animais pequenos – e depois coladas no interior do tubo de colágeno com o auxílio de um gel. “A presença de células do próprio receptor no segmento a ser implantado reduz ao mínimo a necessidade de usar imunossupressores para evitar a rejeição”, explica Elenice Deffune, que orientou o trabalho de Bertanha durante o mestrado.
Em um experimento concluído recentemente, Bertanha comparou o desempenho de quatro tipos de implante. Os animais do primeiro grupo receberam um segmento de veia cava retirada diretamente de outro indivíduo, sem passar pela descelularização, enquanto nos do segundo foi implantada apenas a veia descelularizada. No terceiro grupo foi usado um segmento de veia que passou pelo processo de descelularização seguido do repovoamento com células-tronco de outro indivíduo. E, por fim, o quarto grupo recebeu um segmento de veia descelularizada contendo células-tronco mesenquimais do próprio receptor.
Rejeição e regeneração
Como esperado, no primeiro caso houve uma reação inflamatória exuberante e uma forte rejeição ao vaso transplantado, enquanto no segundo ocorreu apenas uma resposta inflamatória branda. O uso de um tubo de colágeno povoado com células-tronco de outro indivíduo não despertou uma rejeição imediata. As células se diferenciaram formando o endotélio, a camada que reveste o interior dos vasos sanguíneos, e pavimentaram boa parte do tubo. Um mês mais tarde, porém, surgiu uma inflamação expressiva.

Apenas os animais do quarto grupo não apresentaram rejeição, nem inflamação importante, mesmo um mês após a cirurgia e sem o uso de medicamentos imunossupressores. O que mais surpreendeu o pesquisador foi o comportamento das células-tronco implantadas. “Além de terem pavimentado mais de 50% do vaso, elas atraíram outras células-tronco existentes no organismo do receptor”, conta Bertanha. O resultado, inesperado, foi a formação de novos vasos sanguíneos (angiogênese). “Em princípio, essa surpresa é boa porque a angiogênese pode ajudar o novo vaso a se integrar ao tecido adjacente”, diz o pesquisador. “Mas teremos de investigar se esse processo não é patogênico.” Bertanha planeja realizar mais testes em animais, ao mesmo tempo que começa a trabalhar com células-tronco humanas, já pensando em experimentos futuros.
Em paralelo ao trabalho de Bertanha, a biomédica Thaiane Cristine Evaristo, aluna de doutorado da cirurgiã Daniele Cataneo, usa os procedimentos de descelularização e recelularização para produzir no LEC traqueias a serem usadas em transplantes. Ela desenvolve um protocolo de descelularização distinto dos adotados por equipes no exterior – e potencialmente mais barato.
Em outros países, os pesquisadores costumam usar enzimas de origem animal ou obtidas por engenharia genética para eliminar da traqueia as células do doador. Apesar de eficaz, essa estratégia é cara. Pode-se gastar até € 80 mil para descelularizar uma única traqueia. Esse custo, sem contar o da cirurgia e o da internação, torna quase proibitivo o transplante de traqueia em seres humanos.
Buscando uma alternativa, Thaiane e Elenice decidiram submeter as traqueias extraídas de doadores a uma sequência de tratamentos químicos e físicos que produzissem um resultado semelhante ao obtido com as enzimas. Primeiro, removeram cirurgicamente a traqueia e a banharam em um potente detergente, que ajuda a desfazer a membrana das células. Em seguida, usaram uma prensa para comprimi-la suavemente, antes de fazê-la passar por alguns ciclos de congelamento e descongelamento e imersão em um líquido agitado por vibrações ultrassônicas. Por último, a traqueia passou um período exposta à luz emitida por diodos (LEDs).
Peças de retífica
As traqueias livres de células obtidas com essa técnica foram testadas em coelhos, com resultados promissores. Não houve rejeição ao transplante e os roedores sobreviveram por um período que, para humanos, equivale a 10 anos. Com base nesses resultados, Elenice propôs ao físico Vanderlei Bagnato, da Universidade de São Paulo em São Carlos, desenvolver um equipamento integrando todas as etapas da técnica. Recentemente eles depositaram um pedido de patente do aparelho, cujo protótipo se encontra em desenvolvimento.
Ao mesmo tempo que trabalha no equipamento, o grupo de Botucatu prepara a próxima fase de testes, com suínos, etapa necessária antes do início dos estudos com seres humanos. Além de analisar a eficácia das técnicas de descelularização e recelularização de traqueias, o grupo pretende nos próximos anos testar traqueias artificiais feitas a partir de uma nova tecnologia, a ser desenvolvida em parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e o Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo, ambos na capital paulista, e o Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer, em Campinas.
A colaboração prevê que o LEC forneça ao IPT proteínas humanas para serem usadas na produção de um tecido nanoestruturado. No Centro Renato Archer, placas desse nanotecido deverão alimentar uma impressora 3D, que irá esculpir novas traqueias. Uma vez prontas, elas deverão ser remetidas ao LEC para a etapa de recelularização. “Queremos avaliar se essa opção se mostra tão boa quanto o uso das traqueias naturais”, diz Elenice. “Talvez o futuro dos transplantes esteja nesses novos materiais.”
No mundo todo existe uma demanda por traqueias para transplante. Elas são necessárias para substituir a traqueia de crianças que nascem com estreitamento nesse tubo que leva o ar do nariz aos pulmões – enfermidade conhecida como atresia congênita da traqueia, que atinge três crianças em cada 100 mil nascidas vivas – e também as de adultos que passam por longos períodos de internação respirando por meio de aparelhos. “No Hospital das Clínicas de São Paulo há uma fila de cerca de 300 pessoas à espera de um transplante de traqueia”, conta Elenice. “Em muitos casos, são adultos jovens que sofreram acidentes de trânsito.”
A literatura médica internacional traz relatos de aproximadamente 30 pessoas que receberam, de modo experimental, o implante de traqueia obtida por meio de engenharia celular. Mas ainda não se conhecem os resultados, que estão sob análise. “A engenharia celular pode fornecer uma esperança concreta para pacientes com lesões crônicas em órgãos de difícil abordagem terapêutica na atualidade”, diz Elenice. Em sua opinião, há motivos para investir na criação de traqueias e vasos sanguíneos artificiais, uma vez que é difícil obter essas estruturas naturais, que dependem de doadores de órgãos. “Às vezes, comparo nosso método a uma retífica de peças, que recupera as usadas e as deixa prontas para o transplante”, exemplifica Elenice. “Criar traqueias artificiais abriria a possibilidade de trabalharmos com peças novas em folha para o processo de recelularização.”

Referência em engenharia celular no Brasil, a bióloga Nance Nardi, da Universidade Luterana do Brasil, no Rio Grande do Sul, explica que a pesquisa nessa área começou com vasos e traqueias por causa da relativa simplicidade dessas estruturas. “Já há estudos com órgãos mais complexos, como o fígado, mas estão em estágios mais preliminares”, diz. Nance vê no crescente domínio do processo de descelularização uma das chaves para o progresso apresentado pelo LEC. “Remover as células de um arcabouço sem comprometer a sua integridade ainda é algo bem difícil”, avalia. “O trabalho deles tem conseguido boa repercussão, mas ainda deve levar algum tempo até que esses procedimentos se tornem cotidianos nas salas de cirurgia.”
Projeto
Estruturação ex-vivo de vasos sanguíneos a partir da diferenciação de células-tronco de coelhos (nº 2010/52549-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular;Pesquisadora responsável Elenice Deffune (Unesp); Investimento R$ 61.883,41 (FAPESP). Artigos científicos
BERTANHA, M. et alTissue-engineered blood vessel substitute by reconstruction of endothelium using mesenchymal stem cells induced by platelet growth factors
. Journal of Vascular Surgery. v. 59, n.6, p. 1677-85. 2014. BERTANHA, M. et alMorphofunctional characterization of decellularized vena cava as tissue engineering scaffolds. Experimental Cell Research. v. 326, n. 1, p. 103-11. 2014.