sábado, 20 de maio de 2017

Viver para sempre



Os mecanismos do envelhecimento













Estudos com células e organismos vivos identificam fenômenos genéticos e moleculares associados ao declínio físico e mental

Nunca um número tão grande de pessoas viveu tanto. Dos bebês que nascem hoje, mais da metade deve completar 65 anos e viver quase duas décadas a mais do que as pessoas nascidas em meados do século passado. O aumento da longevidade da população mundial e a redução da fertilidade estão fazendo o mundo envelhecer rapidamente. Projeções do documento Developing in an ageing world, publicado em 2007 pela Organização das Nações Unidas (ONU), indicam que em 2050 haverá cerca de 2 bilhões de pessoas com 60 anos ou mais no planeta (22% do total) – em 2005 eram 670 milhões, ou 10% da população.

O aumento da expectativa de vida também traz problemas. Um deles é o aumento rápido da proporção de idosos em muitos países – entre eles, o Brasil. Na França, passaram-se quase 150 anos para que o número relativo de idosos subisse de 10% para 20% da população. Nesse tempo, o país enriqueceu e melhorou as condições de vida das pessoas. China, Brasil e Índia passarão por algo semelhante em 25 anos (ver gráfico).

Hoje há 26 milhões de idosos (12,5% da população) no Brasil. Segundo projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os idosos serão 29% em 2050, quando esse grupo somará 66 milhões de indivíduos. “O Brasil está envelhecendo na contramão”, afirma o médico e epidemiologista carioca Alexandre Kalache, que dirigiu por 13 anos o Programa Global de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS) e hoje preside a seção brasileira do International Longevity Centre (ILC), uma organização sem fins lucrativos que investiga o envelhecimento populacional e estratégias de adaptação dos países à chamada revolução da terceira idade. “Já temos problemas de saúde, emprego, educação, saneamento e também teremos de lidar com uma população formada por um grande número de idosos.”

As doenças associadas ao envelhecimento devem se tornar mais comuns, ao mesmo tempo que mais gente viverá com saúde por mais tempo, mudando o panorama laboral, que exigirá mais flexibilidade e capacidade de adaptação de pessoas, empresas e Estado. “As cidades terão de se preparar para esse novo cenário, criando políticas de moradia, transporte, participação social, trabalho e educação que levem em consideração o idoso”, alerta o epidemiologista.

Em paralelo a essas mudanças, ocorreu ao longo do último século um avanço jamais visto na compreensão das causas do envelhecimento. Uma busca simples com as palavras-chave ageing ou aging em uma das maiores e mais importantes bases de artigos científicos na área da saúde, o Pubmed, encontra cerca de 384 mil papers sobre o assunto publicados de 1925 a 2016 (ver gráfico).

Em uma revisão publicada em 2013 na revista Cell intitulada The hallmarks of aging, pesquisadores da Espanha e da França apresentam uma síntese do que se sabe sobre os mecanismos celulares e moleculares – as causas mais profundas – do envelhecimento. Esta reportagem revisita os principais tópicos do assunto e apresenta avanços, inclusive com a participação de brasileiros.


Os genes e o tempo

Uma “boa genética” é talvez o fator biológico mais associado à longevidade. Experimentos envolvendo a manipulação de genes estenderam de forma significativa o tempo de vida de organismos considerados modelos, como leveduras, moscas, vermes e até mamíferos. A intervenção molecular foi bem-sucedida no verme Caenorhabditis elegans, um nematoide com 1 milímetro de comprimento cujo genoma foi sequenciado em 1998. Em vez de durar duas ou três semanas, o verme passou a viver de 145 a 190 dias depois que alguns de seus genes foram alterados. Com o camundongo (Mus musculus), talvez o melhor amigo de laboratório do ser humano, os resultados são mais modestos, mas igualmente positivos. Intervenções no genoma prolongam em um ano a longevidade do roedor, que é de quase dois anos.

Esses resultados levam alguns biólogos moleculares e geneticistas a defender a ideia de que a senescência é um processo dotado de plasticidade, controlável em certa medida. “Podemos acelerar ou retardar o envelhecimento nos animais”, diz o biólogo português João Pedro Magalhães, chefe do Grupo de Genômica Integrada do Envelhecimento da Universidade de Liverpool, na Inglaterra. “O próximo passo é fazer isso no ser humano.” Segundo Magalhães, os estudos com organismos-modelo já identificaram uns 2 mil genes capazes de regular o envelhecimento.

Uma das estratégias dessa busca por viver mais e melhor é procurar mecanismos celulares e moleculares associados a uma boa velhice em quem é extremamente longevo. Magalhães coordenou em 2015 o sequenciamento do genoma da baleia-da-groenlândia (Balaena mysticetus), o mamífero mais resiliente à passagem do tempo. Com 18 metros de comprimento e 100 toneladas, esse cetáceo do Ártico pode ter em seu DNA pistas sobre como contornar o câncer e sobreviver por dois séculos. O trabalho, publicado na Cell Reports, mostra alterações em um gene ligado à termorregulação, que pode ser importante para entender o baixo metabolismo do animal. Um ritmo mais lento pode explicar como um mamífero tão grande vive três vezes mais que o homem.

O DNA dos indivíduos mais longevos de nossa própria espécie também pode ser fonte de informações úteis para combater doenças associadas à velhice e conter o avanço dos ponteiros do relógio biológico. Essa é a expectativa de projetos ambiciosos como o Wellderly, conduzido desde 2007 pelo Instituto de Pesquisa Scripps, da Califórnia. Em 2016, foram publicados os primeiros resultados de peso do projeto, que sequenciou o genoma completo de 600 idosos saudáveis (sem doenças crônicas), com idade entre 80 e 105 anos, e comparou com o de 1.500 adultos mais jovens.

A diferença mais significativa é que os partici-pantes do Wellderly apresentavam um risco genético menor de desenvolver problemas cognitivos. Em alguns idosos saudáveis, foram identificadas variantes (versões) do gene COL25A1 que lhes dariam proteção contra a doença de Alzheimer. Eles também tinham uma propensão pequena a desenvolver problemas cardíacos, embora o risco genético de tumores, diabetes tipo 2 e derrames fosse igual ao do grupo de controle.

“Foi surpreendente não ver diferença no risco genético para o desenvolvimento de cânceres”, comenta Ali Torkamani, diretor de Informática de Genoma e de Descoberta de Drogas do Scripps. “Sabemos também que há doenças genéticas que influenciam a velocidade do envelhecimento, geralmente acelerando-o. Mas, no geral, o envelhecimento é um processo complexo.”


O Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL) da Universidade de São Paulo (USP) coordena um projeto que caminha para ser um Wellderly brasileiro, com duas populações de idosos. A primeira inclui mais de 1.300 residentes na cidade de São Paulo que tinham mais de 60 anos quando participaram do levantamento epidemiológico Saúde, Bem-estar e Envelhecimento (Sabe), realizado desde 1999 pela Faculdade de Saúde Pública da USP. A segunda, o estudo 80+, abrange a análise do DNA de cerca de 130 octogenários, todos com boa saúde.

Os pesquisadores da USP sequenciaram o exoma, a parte do genoma que codifica proteínas, dos idosos do Sabe. Os primeiros resultados, de 609 participantes, foram publicados em março de 2017 na revista Human Mutation e evidenciaram a singular mistura de populações (negro, índio e europeu) que caracteriza o Brasil. Foram encontradas 207 mil variantes genéticas que nunca tinham sido descritas nos bancos internacionais de dados moleculares. “Isso mostra a importância de produzirmos estudos com a nossa população”, comenta a geneticista Mayana Zatz, coautora do estudo e coordenadora do CEGH-CEL, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. Cada idoso tinha 300 alterações em média, a maioria inofensiva. Apenas sete indivíduos apresentaram mutações associadas a doenças, em geral algum câncer.

Nas próximas semanas, o geneticista Michel Naslavsky, do centro da USP, viaja aos Estados Unidos para sequenciar o genoma de 1.300 idosos do Sabe e do 80+. “Será um trabalho demorado”, conta Naslavsky, primeiro autor do estudo na Human Mutation. Os dados produzidos pelo CEGH-CEL estão disponíveis na página do Arquivo Brasileiro Online de Mutações (ABraOM).

Formas de proteger o DNA

A corrente majoritária de biólogos e bioquímicos aceita hoje a ideia de que os organismos envelhecem e morrem porque, com o tempo, suas células perdem a capacidade de desempenhar funções, definham e morrem mais depressa do que conseguem ser repostas.

A todo momento, reações químicas no organismo, além de fenômenos ambientais, podem causar lesões na molécula de DNA. Experimentos feitos nos anos 1970 pelo bioquímico sueco Tomas Lindahl mostraram que o DNA de uma célula humana sofre 10 mil pequenas alterações espontâneas por dia, quase uma a cada 10 segundos. Nos 3,6 bilhões de anos de existência de vida no planeta surgiram proteínas que auxiliam o material genético a se manter íntegro, permitindo às células produzirem cópias perfeitas de si mesmas e continuar a existir.

Como nada é perfeito, os mecanismos de reparo também falham. Em um estudo com camundongos publicado em 2007 na Nature, pesquisadores dos Estados Unidos e da Holanda comprovaram que, com o tempo, as células-tronco acumulam defeitos genéticos e perdem a capacidade de se reproduzir e manter os tecidos íntegros e em funcionamento. Estudos posteriores mostraram que o mesmo ocorre com células humanas, inclusive em síndromes marcadas por envelhecimento acelerado como a progéria.

Reconstituição artística de dois cromossomos, estruturas que empacotam o DNA nas células. Os telômeros (em laranja) protegem as pontas dos cromossomos

Reconstituição artística de dois cromossomos, estruturas que empacotam o DNA nas células. Os telômeros (em laranja) protegem as pontas dos cromossomos

No Instituto de Ciências Biomédicas da USP, o biólogo molecular Carlos Menck e sua equipe investigam a causa das alterações genéticas que impedem o reparo adequado do material genético. Há alguns anos, eles acompanham pessoas com a doença hereditária xeroderma pigmentosum (ver Pesquisa FAPESP nº 199). Expostas ao sol, elas desenvolvem câncer de pele muito facilmente porque suas células não consertam os danos causados pela radiação ultravioleta. Algumas podem também apresentar problemas neurológicos e outros sintomas parecidos com os observados nas síndromes de envelhecimento acelerado, que em alguns casos leva à morte no primeiro ano de vida. Falhas nesses mesmos genes levam ao atraso no desenvolvimento físico e mental característicos da síndrome de Cockayne.

Anos atrás Menck iniciou uma colaboração com um ex-aluno, o biólogo brasileiro Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia em San Diego, para estudar os fenômenos que poderiam acometer os neurônios dessas pessoas. Com a adição de compostos químicos, eles induziram células da pele de pessoas com síndrome de Cockayne a regredirem ao estágio de células-tronco – essas células são capazes de originar outros tecidos. Depois, as estimularam a se transformarem em neurônios e viram que eles formavam conexões irregulares com outras células. “Os defeitos observados nos neurônios criados em laboratório explicariam, ao menos parcialmente, a origem dos problemas neurológicos desses indivíduos”, conta Muotri, um dos autores do artigo publicado em 2016 na revista Human Molecular Genetics.

Menck e Muotri também verificaram que esses neurônios acumulavam espécies reativas de oxigênio, ou radicais livres, compostos contendo uma forma de oxigênio que interage facilmente com o DNA e as proteínas, danificando-os. Eles suspeitam que a produção se dê em versões defeituosas das mitocôndrias, responsáveis pela produção de energia nas células. “Acreditamos que esse seja o link com a progéria, uma vez que níveis elevados de espécies reativas de oxigênio já foram relacionados ao envelhecimento”, diz Muotri. “Agora estamos tentando reverter esse quadro usando compostos antioxidantes.”

Na USP, Menck trabalha para amplificar os danos que as espécies reativas de oxigênio causam no material genético de pessoas com síndrome de Cockayne e tentar descobrir qual parte da maquinaria celular esses danos emperram. Caso se confirme que essa estratégia reproduz o que ocorre em pessoas com síndrome de Cockayne, Menck e Muotri terão em mãos um modelo de envelhecimento acelerado, útil para compreender o que ocorre com pessoas saudáveis.

Problemas com o reparo de DNA também ocorrem em outras enfermidades características do envelhecimento, como a doença de Alzheimer, mais frequente depois dos 80 anos. Na USP em Ribeirão Preto, a geneticista Elza Sakamoto Hojo e sua equipe vêm analisando a eficiência do reparo do DNA em pessoas com e sem Alzheimer. Eles coletaram amostras de sangue de 13 pessoas com idade entre 65 e 90 anos com a doença (e de 14 sem) e submeteram as células a concentrações elevadas de espécies reativas de oxigênio –usaram água oxigenada –, situação semelhante à que deve ocorrer no organismo em condições de estresse. Em um artigo publicado em 2013 no International Journal of Molecular Sciences, o grupo mostra que as células das pessoas com Alzheimer levaram três vezes mais tempo para se recuperar do banho de radicais livres do que as dos idosos saudáveis.

Telômeros encurtados

Durante a vida da célula, os danos genéticos não ocorrem igualmente ao longo da molécula de DNA. Eles parecem atingir com mais frequência suas duas extremidades, regiões conhecidas como telômeros. Atribui-se a esses segmentos de material genético a função de proteger o restante da fita de DNA – alguns comparam o seu papel com o da ponta plástica do cadarço dos sapatos. Cada vez que o material genético duplica e a célula se divide, os telômeros encolhem 2%. Só uma enzima, a telomerase, é capaz de recuperar o comprimento dos telômeros. Nos mamíferos, porém, a maioria das células adultas não produz telomerase, geralmente sintetizada pelas células-tronco. Com capacidade restrita de recuperação, os telômeros encurtam com a idade. Pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, já demonstraram que é possível encompridar os telômeros artificialmente, introduzindo nas células cópias extras do gene da telomerase. Essa estratégia, no entanto, pode ser arriscada, uma vez que alguns tumores se tornam malignos depois de reativar a produção da enzima telomerase.


Em algumas enfermidades, o encurtamento dos telômeros é mais rápido. Uma delas é a disqueratose congênita, uma doença rara marcada pela dificuldade de produzir células do sangue, da pele e do tecido pulmonar e que pode levar a um envelhecimento acelerado como na progéria. Há algum tempo se sabe que quem tem disqueratose apresenta um encurtamento acentuado dos telômeros. O biólogo brasileiro Luis Francisco Batista, ex-aluno de Menck e professor na Washington University em Saint Louis, Estados Unidos, confirmou a causa: falhas no funcionamento da telomerase.

A partir de células da pele de pessoas com disqueratose, ele gerou células-tronco e verificou que a doença é mais grave quanto maior a incapacidade de produzir telomerase ativa. Desde esse resultado, publicado em 2011 na revista Nature, Batista se dedica a estudar como a falta de telomerase e o encurtamento dos telômeros afetam o estoque de células-tronco dos tecidos. “Estamos tentando conhecer a cadeia de eventos que ocorre em seguida”, conta Batista.

Exaustão sem reposição

Nos idosos, há um acúmulo de células que atingiram o fim de seu ciclo de vida, perderam a capacidade de copiar seu próprio DNA e gerar clones de si mesmas. Essa marca do envelhecimento tem um aspecto positivo: células que não se dividem podem ser eliminadas pelo sistema imunológico, evitando o aparecimento de tumores.

O problema é que também diminui a capaci-dade de o organismo se defender de ameaças externas, como vírus e bactérias, o que pode afetar a eficiência de vacinas. “No Japão, que tem muitos octogenários, testa-se a administração de três doses menores, em vez de uma, da vacina de gripe”, comenta a bióloga Valquiria Bueno, professora da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Estudiosa da imunossenescência, Valquiria comparou a produção de células de defesa de seis homens e seis mulheres com idade entre 88 e 101 anos do Sabe com o de estudantes da universidade com menos de 30 anos. A geração na medula óssea de leucócitos, um tipo de célula de defesa, foi em média 40% menor nos idosos, dado semelhante ao encontrado em trabalhos internacionais. Além desses achados, apresentados em 2016 no livro The ageing imune system and health, viu-se que no sangue desses idosos longevos também aumenta a produção de outro tipo de célula que pode reduzir a resistência a infecções e favorecer o desenvolvimento de câncer.

Também há abordagens mais polêmicas. Experimentos recentes com animais sugerem que a troca de células velhas por novas poderia retardar o envelhecimento ou reverter parcialmente a deterioração em certos órgãos. Alguns desses estudos empregam uma técnica controversa concebida em meados do século XIX, a parabiose, por meio da qual um roedor jovem é unido cirurgicamente a um velho a fim de que este receba uma transfusão de sangue novo.

Uma mitocôndria, organela celular que converte nutrientes em energia, observada ao microscópio eletrônico

Uma mitocôndria, organela celular que converte nutrientes em energia, observada ao microscópio eletrônico

Em 2013, a equipe de Amy Wagers, especialista em medicina regenerativa da Universidade Harvard, publicou um artigo na Cell em que, por meio da parabiose, identificou em camundongos velhos que receberam sangue de animais jovens o aumento de uma proteína que combateria disfunções cardíacas ligadas à velhice. Estudos posteriores reportaram benefícios desse método em tecidos cerebrais e musculares.

Em novembro passado, um artigo publicado na Nature Communications relatou que a administração de sangue novo praticamente não melhorou os parâmetros biológicos de camundongos velhos. Já roedores jovens pioraram ao receber transfusões de sangue velho. “Nosso estudo sugere que o sangue novo por si só não funcionará como tratamento”, disse, ao divulgar o trabalho para a imprensa, Irina Conboy, professora da Universidade da Califórnia em Berkeley, principal autora do artigo. “É mais correto dizer que há inibidores no sangue velho que precisamos combater para reverter o envelhecimento.”

Danos nas centrais energéticas

Por muito tempo as mitocôndrias foram tratadas como as vilãs do envelhecimento. Em 1956, o químico e médico norte-americano Denham Harman propôs que uma causa da perda de vigor e morte das células seria a produção de radicais livres. Então pesquisador da Universidade da Califórnia em Berkeley, ele suspeitava que essas moléculas pudessem interagir com o DNA, as proteínas e os outros componentes das células, causando estragos. Experimentos posteriores reforçaram os argumentos de Harman e levaram até à recomendação de não se fazer exercício físico, que aumenta o consumo de energia e a respiração celular. Hoje a visão é outra.

Nas duas últimas décadas, experimentos indicaram que os radicais livres desempenham uma função dupla nas células. Em concentrações baixas, induzem a produção de compostos antioxidantes, protegem as células do envelhecimento e até estimulam a sua proliferação. Em níveis elevados, porém, desencadeiam a morte celular.

No final dos anos 1970, durante um estágio de pós-doutorado na Universidade Johns Hopkins, o médico e bioquímico Aníbal Vercesi notou que determinadas condições provocavam a abertura de poros nas membranas das mitocôndrias, matando-as. Mais tarde, de volta à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde é professor, ele constataria que esse efeito se deve ao aumento da concentração de radicais livres.

Em experimentos feitos com sua equipe – da qual participavam os médicos e bioquímicos Roger Castilho e Alicia Kowaltowski, então alunos de doutorado e hoje professores na Unicamp e na USP, respectivamente –, Vercesi verificou que no interior das mitocôndrias o acúmulo de cálcio estimula a produção de radicais livres em excesso e leva aos danos celulares. Pelos poros que surgem na membrana da mitocôndria escapam proteínas, material genético e os próprios radicais livres. “Propusemos essa hipótese em 2001”, conta o bioquímico. “Hoje ela é amplamente aceita e até usada para explicar os danos que ocorrem no infarto do miocárdio e na isquemia cerebral, além do desenvolvimento de doenças que surgem com a idade, como o diabetes e o Alzheimer.”

A bioquímica Nadja de Souza Pinto, ex-aluna de doutorado de Vercesi e hoje professora na USP, estuda as consequências da produção excessiva de radicais livres sobre o DNA das mitocôndrias. No período em que trabalhou no Instituto Nacional de Envelhecimento dos Estados Unidos, ela estudou o cérebro de pessoas com Alzheimer e observou que o reparo das lesões de DNA causadas por radicais livres é menor naquelas com os sintomas mais graves. De volta ao Brasil, ela, o geriatra Wilson Jacob Filho e o gerontólogo José Marcelo Farfel, ambos da USP, estão avaliando o reparo de DNA nas mitocôndrias de dois grupos: aqueles com o Alzheimer típico e os chamados portadores assintomáticos, que não desenvolvem problemas cognitivos. Em estudos com ratos, Nadja constatou que o reparo do DNA mitocondrial aumenta até meados da vida do animal, depois decai. “Estamos propondo que a baixa atividade desses mecanismos de reparo possa ser um fator de risco para o Alzheimer”, conta.

Comer menos e viver mais


O efeito da alimentação sobre o tempo de vida de diferentes organismos talvez seja o tópico relacionado ao envelhecimento há mais tempo estudado. Há quase um século se sabe que reduzir a quantidade de energia consumida pelos animais prolonga seu tempo de vida. Em 1933, o bioquímico e gerontólogo norte-americano Clive McCay, pesquisador na Universidade Cornell, publicou na Science um breve artigo no qual comparava a longevidade dos ratos criados pelo seu grupo, em Nova York, com a de outros mantidos no laboratório do fisiologista James Slonaker na Universidade Stanford, na Califórnia.

Os roedores do grupo de McCay, alimentados com uma dieta mais nutritiva, cresciam e alcançavam a maturidade sexual mais rapidamente. Mas viviam apenas metade do tempo dos ratos do laboratório de Slonaker, que haviam ganhado peso e amadurecido mais lentamente e vivido, em média, 1.200 dias. “É possível que longevidade e crescimento rápido sejam incompatíveis e que a melhor chance para uma vida anormalmente longa pertença aos animais que crescem mais vagarosamente e alcançam a maturidade mais tarde”, argumentou McCay, lançando a hipótese de que a ingestão reduzida de calorias favoreceria a longevidade, em detrimento da capacidade reprodutiva.
Pelos 50 anos seguintes, o envelhecimento foi entendido como inevitável e inerente à vida. Essa visão só começou a mudar nos anos 1990, com os achados da bióloga molecular Cynthia Kenyon. Professora da Universidade da Califórnia em São Francisco e hoje vice-presidente de pesquisa sobre envelhecimento da empresa Calico, criada pelo Google, Cynthia verificou que alterações em um gene dobravam o tempo de vida do C. elegans sem afetar sua fertilidade.

Mais tarde se descobriu que esse gene codificava uma proteína da superfície das células – um receptor – à qual se conectam peptídeos semelhantes à insulina. Esse receptor, viu-se depois, funcionava como um sensor de nutrientes do ambiente extracelular. “Esses avanços geraram uma corrida para se estudar a restrição calórica do ponto de vista molecular”, conta o biomédico Marcelo Mori, da Unicamp, que investiga os mecanismos que promovem o aumento do tempo de vida e são ativados pela restrição calórica e pelo exercício físico.

Um desses mecanismos é a produção de microRNAs, moléculas que bloqueiam o funcionamento dos genes e a produção de proteínas. Em estudos com camundongos iniciados em seu pós-doutorado em Harvard e continuados na Unifesp e na Unicamp, Mori verificou que a principal fonte de microRNAs circulantes em mamíferos é o tecido adiposo, onde estão as reservas de gordura, e que essa produção diminui com o envelhecimento. Ele também constatou, em experimentos com camundongos e com C. elegans, que a restrição calórica aumenta o tempo de vida, por elevar a atividade da enzima Dicer, que transforma moléculas longas de RNA em microRNAs (ver Pesquisa FAPESP nº 212). “O envelhecimento diminui a produção de Dicer, de microRNAs e o tempo de vida, enquanto a restrição calórica faz o oposto”, afirma Mori.

Na USP, Alicia Kowaltowski e seu grupo estão interessados em conhecer como a redução na ingestão de calorias afeta o funcionamento das mitocôndrias. Em animais mantidos sob uma dieta mais restritiva elas são mais alongadas, apresentam menos danos e são substituídas mais rapidamente do que na dieta normal, observaram os pesquisadores em artigo deste ano na revista Mechanisms of Ageing and Development. Experimentos anteriores, apresentados em 2016 na Aging Cell, indicaram que a restrição calórica melhora o funcionamento das mitocôndrias dos neurônios e as torna mais resistentes a estresses celulares como o aumento dos níveis de cálcio e de radicais livres. Comer menos, segundo outro trabalho do grupo, também melhora o funcionamento das células do pâncreas produtoras do hormônio insulina, protegendo contra o diabetes, uma das doenças características do envelhecimento.

Os achados são animadores, mas não se sabe se é possível aplicá-los à saúde das pessoas. “É difícil transpor os resultados obtidos com os modelos animais para os seres humanos”, conta Alicia. No laboratório, os animais vivem protegidos, são sedentários e comem à vontade, o que os torna obesos em comparação com os que vivem na natureza. “Já as pessoas, mesmo sedentárias, realizam atividades e não se alimentam continuamente”, lembra a pesquisadora. “No caso humano, é possível que apenas manter o peso em níveis considerados saudáveis já seja o equivalente à restrição calórica para os animais de laboratório”, diz.

Marcelo Mori, da Unicamp, imagina ser inviável para a maioria dos seres humanos manter uma restrição calórica radical por toda a vida sem que isso resulte em prejuízos à saúde. Para o biomédico, é preciso encorajar a busca de intervenções farmacológicas ou dietéticas que mimetizem os efeitos da restrição calórica de forma segura e menos exigente, assim como a prática regular de atividade física, que também parece aumentar o tempo médio de vida e talvez possa ser mais facilmente adotada. “Apesar dos recentes avanços”, lembra Mori, “o fato é que ainda estamos longe de propor estratégias viáveis para aumentar a longevidade dos seres humanos”.


Projetos
1. CEGH-CEL – Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-tronco (
nº 13/08028-1); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisadora responsável Mayana Zatz (USP); Investimento R$ 26.897.714,59.
2. Consequências de deficiências de reparo de lesões no genoma (
nº 14/15982-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Carlos Frederico Martins Menck (USP); Investimento R$ 2.451.302,99.
3. Instabilidade genômica e vias de sinalização molecular envolvendo respostas a danos e reparo de DNA (
nº 13/09352-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Elza Tiemi Sakamoto Hojo (USP-RP); Investimento R$ 624.252,12.
4. Metabolismo energético, estado redox e funcionalidade mitocondrial na morte celular e em desordens cardiometabólicas e neurodegenerativas (
nº 11/50400-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Aníbal Eugênio Vercesi (Unicamp); Investimento R$ 3.019.922,94.
5. Dicer, miRNAs e o controle da função mitocondrial no contexto do envelhecimento e da restrição calórica (
nº 15/01316-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Marcelo Alves da Silva Mori (Unicamp); Investimento R$ 292.429,97.
6. Bioenergética, transporte iônico, balanço redox e metabolismo de DNA em mitocôndrias (
nº 10/51906-1); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Alicia Juliana Kowaltowski (USP); Investimento R$ 2.210.658,64.
7. Estudo das respostas celulares a danos no DNA mitocondrial em células de mamíferos (
nº 08/51417-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Nadja Cristhina de Souza Pinto (USP); Investimento R$ 292.654,45.
8. Avaliação das células mieloides supressoras em indivíduos idosos: população brasileira e britânica (
nº 14/50261-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Acordo Universidade de Birmingham; Pesquisadora responsável Valquiria Bueno (Unifesp); Investimento R$ 64.197,47.
Artigos científicos
LÓPEZ-OTÍN, C. et al.
The hallmarks of aging. Cell. 6 jun. 2013.
NASLAVSKY, M. S. et al.
Exomic variants of an elderly cohort of Brazilians in the ABraOM database. Human Mutation. 23 mar. 2017.
VESSONI, A. T. et al.
Cockayne syndrome-derived neurons display reduced synapse density and altered neural network synchrony. Human Molecular Genetics. 10 jan. 2016.
LEANDRO, G. S. et al.
Lymphocytes of patients with Alzheimer’s disease display different DNA damage repair kinetics and expression profiles of DNA repair and stress response genes. International Journal of Molecular Sciences. 10 jun. 2013.
BATISTA, L. F. et al.
Telomere shortening and loss of self-renewal in dyskeratosis congenita induced pluripotent stem cells. Nature. 22 mai. 2011.
KOWALTOWSKI, A. J., CASTILHO, R. F. e VERCESI, A. E.
Mitochondrial permeability transition and oxidative stress. FEBS Letters. 20 abr. 2001.
WEISMANN, L. et al.
Defective DNA base excision repair in brain from individuals with Alzheimer’s disease and amnestic mild cognitive impairment. Nucleic Acids Research. v. 35(16). p. 5545-55. 2007.
SOUZA-PINTO, N. C. et al.
Age-associated increase in 8-oxo-deoxyguanosine glycosylase/AP lyase activity in rat mitochondria. Nucleic Acids Research. v. 27(8), p. 1935-42. 1999.
LUÉVANO-MARTÍNEZ, L. A. et al.
Calorie restriction promotes cardiolipin biosynthesis and distribution between mitochondrial membranes. Mechanisms of Ageing and Development. 14 fev. 2017.
AMIGO, I. et al.
Caloric restriction increases brain mitochondrial calcium retention capacity and protects against excitotoxicity. Aging Cell. 13 set. 2016.
MORI, M. A. et al.
Role of microRNA processing in adipose tissue in stress defense and longevity. Cell Metabolism. 5 set. 2012.

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