Violência, medo e preconceito
Pesquisadores de várias áreas usam levantamentos históricos e
testes de DNA para reaproximar famílias separadas pela hanseníase
RODRIGO DE OLIVEIRA ANDRADE | ED. 236 | OUTUBRO 2015
© EDUARDO CESAR
Aos 88 anos, Nivaldo Mercúrio vive no antigo
hospital-colônia de Bauru desde os 17, quando foi internado após o diagnóstico
de hanseníase
de Bauru
Nivaldo
Mercúrio tinha 7 anos quando uma ambulância preta com a sigla DPL, de
Departamento de Profilaxia da Lepra, parou em frente à sua casa, em um sítio em
Itápolis, interior de São Paulo. Dois médicos desceram e pediram para examinar
toda a família. “Descobriram que minha mãe tinha hanseníase, a antiga lepra, e
dias depois voltaram para levá-la”, ele relembra, aos 88 anos, enquanto caminha
pelas ruas do antigo hospital-colônia Aimorés, hoje parte do Instituto Lauro de
Souza Lima, em Bauru, um dos principais centros de atendimento a pessoas com
hanseníase no estado de São Paulo. “Depois os médicos pediram para que eu, meu
pai e meus irmãos fôssemos para a rua e puseram fogo em nossa casa.” Em 1933, a
internação compulsória e a queima da casa das pessoas com hanseníase eram as
formas adotadas para evitar que outras pessoas se contaminassem com a doença,
vista com forte repulsa desde os tempos medievais.
Dez
anos depois, Nivaldo recebeu o mesmo diagnóstico da mãe e foi levado para
Aimorés, onde vive desde então, exceto por alguns meses em que tentou trabalhar
em Itápolis. Sua mãe foi levada para outro hospital e ele nunca mais a
viu. Estima-se que cerca de 40 mil pessoas tenham sido separadas de suas
famílias por causa das estratégias de isolamento adotadas como forma de tratar
a hanseníase. O desafio agora é tentar reaproximar as famílias separadas à
força. Desde 2011, uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) trabalha com o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela
Hanseníase (Morhan), organização não governamental sediada no Rio de Janeiro,
para fazer com que familiares de pessoas com hanseníase que há muito não se
viam ou sequer se conheciam se encontrem.
©
EDUARDO CESAR
Igreja
e coreto dos anos 1950 preservados pelo Instituto Lauro de Souza Lima, em Bauru
A
hanseníase é uma doença transmissível por meio do contato com secreções nasais,
tosses ou espirros de pessoas infectadas. Por muito tempo conhecia-se apenas
seu agente causador, a bactériaMycobacterium leprae, identificada pelo
médico norueguês Gerhard Hansen em 1873, que atinge os nervos e gera manchas
esbranquiçadas ou avermelhadas na pele. Antes incerto, o tratamento hoje é
simples, gratuito e eficiente, à base de sulfona e outros dois medicamentos,
rifampicina e clofazimina, sem a necessidade de internações compulsórias. No
entanto, o Brasil é o segundo país em número de casos da doença no mundo, atrás
apenas da Índia. Em 2014, o Ministério da Saúde registrou 31.064 novos casos.
Pequenas
cidades
Os hospitais-colônia, que funcionaram dos anos 1930 a 1980, eram pequenas cidades, com igreja, delegacia, presídio e prefeitura. Seus ocupantes plantavam, cozinhavam e faziam pequenas transações entre eles usando uma moeda própria, chamada lazareto, em referência aos primeiros hospitais-colônia surgidos na Ilha de San Lazzaro, perto de Veneza, na Itália, em meados do século XIII. “Uma vez internados, os doentes só saíam dos leprosários com autorização dos médicos, o que raramente acontecia”, conta a médica Lavínia Schuler-Faccini, professora da UFRGS e uma das coordenadoras do Instituto Nacional de Genética Médica e Populacional (Inagemp), sediado em Porto Alegre.
“A
maioria dos que nos procuram são filhos de pessoas com hanseníase querendo
encontrar os irmãos, já que os pais muitas vezes estão mortos”, diz Artur
Custódio, presidente do Morhan, fundado em 1981 por ex-internos de
hospitais-colônia, que hoje atende pessoas à procura de seus familiares. O
trabalho integrado de médicos, historiadores, antropólogos e sociólogos
permitiu às equipes de Porto Alegre e do Rio reaproximar 800 pessoas, por meio
de visitas a antigos hospitais-colônia e consultas a arquivos para atestar o
parentesco. “Quando as informações encontradas nos documentos não são
suficientes, aplicamos o teste de DNA”, explica a bióloga Flávia Costa Biondi,
da equipe da UFRGS. Pais e filhos que se reencontram, porém, raramente voltam a
viver juntos. “Em geral os filhos não conseguem reconhecê-los como pais ou
mães. O isolamento os fez completos desconhecidos”, diz Lavínia. Algumas
histórias são dramáticas, como a de um homem que queria saber do pai internado
havia décadas em um leprosário do Acre. Meses depois a equipe do Morhan o
localizou, mas ele tinha morrido fazia poucas semanas.
Estima-se
que 25 mil crianças tenham se tornado órfãs de pais vivos internados em
hospitais-colônia, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. As crianças que
nasciam nos leprosários ou não tinham com quem ficar eram levadas para os
preventórios, como eram chamados os orfanatos para filhos de pessoas com
hanseníase, às vezes em outras cidades. “Os médicos diziam às mulheres que seus
filhos tinham morrido no parto, quando haviam sido dados para adoção”, relata
Lavínia. Em 1943, os 22 preventórios do país abrigavam cerca de 2.500 crianças,
que depois eram entregues para parentes ou desconhecidos dispostos a criá-las.
Não era fácil encontrar quem as adotasse, porque se temia que as crianças
estivessem contaminadas e pudessem transmitir a doença.
Registro
de uma tentativa de fuga de um dos internos
Depois
de examinar cerca de 10 mil fichas preenchidas por filhos de pessoas isoladas
em leprosários do país, a equipe do Morhan verificou que muitas crianças
adotadas eram forçadas a trabalhar, sofriam maus-tratos e eram discriminadas
por serem filhos de pessoas com hanseníase. Por meio desses documentos, os
pesquisadores também identificaram rotas de saída de crianças para adoção.
“Muitas crianças do norte de Minas Gerais foram enviadas para a Itália e, do
sul do Pará, por meio do Suriname, para a Holanda”, diz Custódio. Em julho, a
equipe do Morhan localizou na Holanda dois irmãos, filhos de brasileiros que
tiveram hanseníase e ainda estão vivos.
O
projeto coordenado pela equipe da UFRGS e do Morhan inspirou-se na busca de
crianças e pais desaparecidos durante o governo militar da Argentina (1967 a
1983). Estima-se que, à época naquele país, 500 crianças tenham nascido de mães
presas que depois desapareceram. Em geral, elas eram integradas às famílias de militares
e, às vezes, registradas como filhos biológicos dos pais adotivos. “Mas há
também casos de bebês abandonados em instituições religiosas ou em esquinas de
Buenos Aires”, diz a antropóloga Claudia Lee Williams Fonseca, da equipe da
UFRGS.
Custódio
defende que os filhos — e não apenas os pais — sejam indenizados pelo Estado
brasileiro, que continuou a isolar pessoas com hanseníase até 1986, mesmo tendo
assinado, em 1952, um acordo internacional comprometendo-se a interromper as
internações compulsórias depois da descoberta de tratamentos eficazes para a
doença. Na década de 1940, a sulfona começou a ser usada no tratamento da hanseníase
no Brasil, que seguiu outros países, permitindo que as pessoas fossem tratadas
apenas por meio de visitas periódicas a hospitais, não precisando mais serem
isoladas. Em 2007, uma Medida Provisória aprovada pelo Congresso Nacional
concedeu pensão vitalícia às vítimas da doença que continuaram a ser isoladas
até 1986.
Pessoas
com hanseníase recém-chegadas em vagões fechados ao hospital-colônia Aimorés na
década de 1930
Isolamento
A internação compulsória foi adotada no Brasil como estratégia para o controle da hanseníase a partir de 1924 e ganhou força na década de 1940, durante o governo Getúlio Vargas, com o Plano Nacional de Combate à Lepra, que previa o isolamento compulsório de todos os casos confirmados e o cuidado e a educação dos filhos sadios das pessoas doentes. “Como não havia nenhum medicamento eficaz”, diz Claudia Fonseca, da UFRGS, “o isolamento das pessoas com hanseníase era considerado essencial, tornando-se mais importante que o próprio tratamento existente”.
A internação compulsória foi adotada no Brasil como estratégia para o controle da hanseníase a partir de 1924 e ganhou força na década de 1940, durante o governo Getúlio Vargas, com o Plano Nacional de Combate à Lepra, que previa o isolamento compulsório de todos os casos confirmados e o cuidado e a educação dos filhos sadios das pessoas doentes. “Como não havia nenhum medicamento eficaz”, diz Claudia Fonseca, da UFRGS, “o isolamento das pessoas com hanseníase era considerado essencial, tornando-se mais importante que o próprio tratamento existente”.
Na
década de 1920, as pessoas com hanseníase vagavam pelas ruas das cidades ou
postavam-se à margem das estradas à espera de esmolas de viajantes, que os evitavam,
porque se pensava que até o ar poderia estar contaminado. “Os doentes viveram
em completo abandono por décadas no Brasil”, diz o médico Marcos Virmond,
diretor do Instituto Lauro de Souza Lima, que atende cerca de 2 mil pessoas
todos os meses. O instituto ainda preserva prédios, a igreja, o cassino,
transformado em museu, as ruas de paralelepípedos e as praças repletas de
árvores do antigo hospital-colônia Aimorés. Em São Paulo, o primeiro asilo
desse tipo foi o Santo Ângelo, construído em Mogi das Cruzes, em 1928, onde, no
arco da entrada principal, lia-se “Aqui renasce a esperança”.
Em
1943, os 41 hospitais-colônia espalhados pelo país abrigavam 17 mil pessoas,
que, uma vez internadas, precisavam encontrar novas formas de sobrevivência
para não se abater pelo isolamento. “As pessoas, privadas de direitos básicos
de cidadania, eram vigiadas, controladas e governadas por leis específicas”,
diz Claudia Fonseca. A década de 1940 foi uma época de combate intensivo à
doença, avalia Virmond. As pessoas suspeitas de estarem infectadas eram
denunciadas às autoridades sanitárias e perseguidas nas ruas e em suas casas.
Em seguida, eram isoladas nos hospitais-colônia. Em Aimorés, os doentes detidos
pela polícia sanitária eram transportados em vagões especiais de trens até o
hospital.
Na
década de 1920, quem tinha hanseníase vivia em acampamentos como este, à margem
de uma estrada próxima a Bauru
A
rejeição às pessoas com hanseníase não vem de hoje. A doença é considerada uma
das mais antigas da história da humanidade — ainda que por séculos muitas
doenças dermatológicas fossem confundidas com lepra. “Há registros de casos de
pessoas queimadas vivas em suas casas na Idade Média, na Europa”, diz a
socióloga Glaucia Maricato, da UFRGS. A aparência das pessoas com a doença, que
causa deformações, somada ao medo do contágio, motivava os europeus a manter os
pacientes em asilos, os lazaretos, ou expulsá-los das cidades. A hanseníase,
mais do que qualquer outra, era vista como uma doença impura. Veio daí a ideia
de que a maldade era uma das características do portador. “Os homens daquele
tempo estavam persuadidos de que no corpo reflete-se a podridão da alma”,
escreveu o historiador francês Georges Duby no livro Ano 1000 ano 2000:
na pista de nossos medos. “O leproso era, só por sua aparência corporal,
um pecador. Desagradara a Deus e seu pecado purgava através dos poros.”
A
visão medieval da doença perdurou até o século XX, segundo a historiadora Yara
Nogueira Monteiro, do Instituto de Saúde de São Paulo. Em um artigo publicado
na revista Saúde e Sociedade, ela analisou como o isolamento
compulsório das pessoas com hanseníase no estado contribuiu para que o estigma
da doença atingisse pessoas sadias. De modo geral, ela observa, a internação de
um dos pais acarretava a chamada explosão familiar. Quando a notícia de que
alguém tinha hanseníase se espalhava, era comum que parentes próximos perdessem
o emprego e as crianças fossem expulsas da escola. Esse efeito cascata, segundo
ela, contribuiu para que os doentes fossem deixados ainda mais à margem da
sociedade.
Foi
o que aconteceu com Nivaldo Mercúrio. Em 1968, curado, ele deixou o
hospital-colônia, voltou para Itápolis e arrumou um emprego. Semanas depois,
porém, outros empregados exigiram do dono da empresa que ele fosse demitido
porque vinha de um leprosário. Ele exibia os sinais de seu passado: suas mãos
haviam atrofiado e falava com dificuldade, em consequência do tratamento com
óleo de chaulmoogra, usado antes da sulfona. “Fui demitido e, meses depois,
voltei para cá”, ele conta. O antigo hospital-colônia de Aimorés abriga hoje 74
pessoas que, como ele, um dia tiveram hanseníase.
Artigos científicos
FONSECA, C. L. W. et al. Project REENCONTRO: ethical aspects of genetic identification in families separated by the compulsory isolation of leprosy patients in Brazil. Journal of Community Genetics. v. 6, 3, p. 215-22. jul. 2015.
PENCHASZADEH, V. B. & SCHULER-FACCINI, L. Genetics and human rights. Two histories: Restoring genetic identity after forced disappearance and identity suppression in Argentina and after compulsory isolation for leprosy in Brazil.Genetics and Molecular Biology. v. 37, p. 299-304. mar. 2014.
MONTEIRO, Y. N. Violência e profilaxia: os preventórios paulistas para filhos de portadores de hanseníase. Saúde e Sociedade. v. 7, n. 1, p. 3-26. 1998.
FONSECA, C. L. W. et al. Project REENCONTRO: ethical aspects of genetic identification in families separated by the compulsory isolation of leprosy patients in Brazil. Journal of Community Genetics. v. 6, 3, p. 215-22. jul. 2015.
PENCHASZADEH, V. B. & SCHULER-FACCINI, L. Genetics and human rights. Two histories: Restoring genetic identity after forced disappearance and identity suppression in Argentina and after compulsory isolation for leprosy in Brazil.Genetics and Molecular Biology. v. 37, p. 299-304. mar. 2014.
MONTEIRO, Y. N. Violência e profilaxia: os preventórios paulistas para filhos de portadores de hanseníase. Saúde e Sociedade. v. 7, n. 1, p. 3-26. 1998.