Uma
gordura contra a obesidade
Ácidos graxos insaturados, como o ômega 3, promovem
o nascimento de neurônios e talvez possam reverter danos ao cérebro de obesos
MARCOS
PIVETTA | ED. 240 | FEVEREIRO 2016
Salmão e linhaça: alimentos ricos em gorduras
insaturadas, como ômega 3, parecem combater inflamação cerebral associada ao
ganho de peso
As reações do corpo humano à
ingestão de dietas ricas em gorduras são complexas e marcadas por aspectos
positivos e negativos. O coração é provavelmente o órgão em que os potenciais
malefícios e benefícios dessa relação dual são mais conhecidos. Alguns tipos de
ácidos graxos tendem a se depositar nos tecidos, elevar a pressão arterial e
aumentar os riscos de problemas cardíacos. Esse é o caso das gorduras
saturadas, encontradas na carne vermelha, em aves e derivados do leite
integral, e das trans, produzidas a partir da modificação de óleos vegetais e
usadas em grande parte dos alimentos processados industrialmente. Já outras
formas de gordura, como as insaturadas, parecem contribuir para manter baixos os
níveis de colesterol e da pressão e relativamente limpos os vasos sanguíneos.
Nas últimas duas décadas, uma relação igualmente intrincada com os diferentes
tipos de gordura começou a ser esmiuçada em outro órgão vital – o cérebro.
Novos estudos têm levantado
indícios de que a obesidade, marcada geralmente por um consumo excessivo de
gorduras saturadas e trans como parte de hábitos alimentares e de um estilo de
vida pouco saudáveis, produziria uma inflamação contínua no hipotálamo. Os
danos a essa região, que fica na base do cérebro e funciona como um sensor de
nutrientes, levariam à morte dos neurônios responsáveis por controlar as
sensações de fome e de saciedade e o gasto de energia. Assim, o mau
funcionamento dos circuitos que regulam o comportamento alimentar – o indivíduo
sente fome logo depois de uma farta refeição – contribuiria para perpetuar o
ganho de peso. Esse é um dos efeitos deletérios possivelmente ocasionados pelo
acúmulo de gorduras saturadas no sistema nervoso central. Um trabalho recente do
Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC, na sigla em inglês), um
dos 17 Centros
de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP,
sinaliza que o dano cerebral em animais obesos, alimentados com dietas ricas em
gorduras saturadas, poderia ser parcialmente revertido por meio do consumo de
alimentos ou compostos ricos em outro tipo de gordura, as insaturadas,
basicamente as mesmas que são benéficas ao coração.
Pesquisadores do OCRC deram, de
duas maneiras distintas, ácidos graxos insaturados da família dos ômega 3 para
camundongos obesos e constataram a formação de novos neurônios no hipotálamo.
Para um grupo de roedores, forneceram uma dieta rica em ômega 3, presente em
grandes quantidades em algas, em peixes de água fria, como salmão e atum, e na
linhaça. Para outro, injetaram ácido docosa-hexaenoico (DHA), ácido graxo
poli-insaturado da família dos ômega 3, diretamente no hipotálamo. Um terceiro
grupo recebeu apenas uma solução salina em sua dieta.
Oito semanas mais tarde,
constataram o surgimento no hipotálamo de neurônios do tipo Pomc, que modulam a
sensação de saciedade, nos roedores que se alimentaram de comida rica em ômega
3 e nos que receberam doses de DHA. O grupo de controle não apresentou formação
de novos neurônios. “Esse é o primeiro trabalho que mostra neurogênese no
hipotálamo induzida por um nutriente alimentar, como a dieta rica em ômega 3”,
afirma o médico Lício Velloso, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade
Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), coordenador do centro e do estudo com os
animais. “Talvez as gorduras insaturadas possam ser uma forma de minimizar a
morte de neurônios causada pela inflamação do cérebro associada à obesidade.” O
estudo foi publicado na revista científica norte-americana Diabetes em
28 de outubro de 2015.
Os pesquisadores conseguem
identificar os novos neurônios, cuja formação foi estimulada pela dieta rica em
ômega 3, entre os que já existiam no cérebro dos roedores porque usam um
marcador celular para diferenciá-los. Eles administram nos animais um marcador
de proliferação celular denominado BrdU, um nucleosídeo (uma base nitrogenada
ligada a um açúcar) sintético análogo à timidina, que pode ser conjugado com um
anticorpo fluorescente. Durante a síntese de DNA, o BrdU toma o lugar da
timidina e se insere no material genético quando novas células são geradas.
Dessa forma, o composto é uma ferramenta molecular útil para averiguar se há
nascimento de neurônios no cérebro.
No experimento feito no OCRC, os
pesquisadores geraram imagens da região do hipotálamo dos camundongos obesos
obtidas por microscopia confocal. Nos animais em que não houve neurogênese,
apareceram apenas células da cor vermelha, que representam os neurônios Pomc que
já existiam nos roedores. Nos que produziram novos neurônios induzidos pela
dieta rica em DHA, surgiram também pontos em verde, novas células nervosas
marcadas pelo composto BrdU. “Avaliamos outras regiões do cérebro e a
neurogênese estimulada pelo ômega 3 parece ocorrer predominantemente em certas
áreas do hipotálamo”, diz o biólogo Lucas Nascimento, primeiro autor do estudo,
que defendeu sua tese de doutorado sobre o tema no ano passado na Unicamp
(atualmente ele faz estágio de pós-doutorado no Helmholtz Zentrum, na
Alemanha). Os pesquisadores do Cepid também encontraram indícios de que o DHA
estimularia a neurogênese ao interagir com duas proteínas, o fator de
crescimento derivado do cérebro (BDNF) e o receptor de ácidos graxos GPR40.
Quando inibiram a ação dessas duas proteínas no hipotálamo, a formação de novos
neurônios diminuiu.
Barreira entre o cérebro e o sangue
As gorduras parecem exercer efeitos positivos ou negativos diretamente em
certas regiões do cérebro porque, em mais situações do que se supunha,
conseguem atravessar a barreira hematoencefálica. Esse é o nome dado ao sistema
de proteção que evita a entrada no cérebro de substâncias consideradas exógenas
ou potencialmente perigosas presentes no sangue. A barreira é semipermeável,
deixa passar algumas substâncias e bloqueia outras, e reveste todos os vasos
sanguíneos do cérebro. É formada por células endoteliais, cujas junções (o
espaço existente entre duas células contíguas) são extremamente justas e
reforçadas por astrócitos, células do cérebro com propriedades de suporte, 10
vezes mais abundantes do que os neurônios. Como regra geral, os estudiosos
sempre pensaram que as gorduras do sangue não passavam pela barreira.
Mas essa percepção mudou nos
últimos 10 anos. Em 2005, um artigo assinado por Velloso e colegas da Unicamp e
da Universidade de São Paulo (USP), publicado na revista Endocrinology, foi
um dos primeiros a sugerir que camundongos obesos apresentavam uma inflamação
persistente no hipotálamo e desenvolviam resistência à insulina e à leptina,
condições que abrem caminho para a ocorrência do diabetes. “Os neurônios dos
animais que comeram uma dieta rica em gordura saturada paravam de responder a
esses hormônios depois de algumas semanas”, afirma Velloso. A insulina é
responsável por carregar a glicose para o interior das células, onde o açúcar é
transformado em energia essencial à vida. A leptina induz a saciedade.
Essas alterações no hipotálamo
são suficientes para criar um quadro que favoreceria a manutenção da obesidade
e o surgimento de distúrbios geralmente associados ao ganho de peso, como o
diabetes e os problemas cardíacos – e a raiz desse mau funcionamento seria a
morte de neurônios provocada pela adoção permanente de dietas ricas em gorduras
saturadas.
Extensão do dano cerebral
Em trabalhos mais recentes, o grupo coordenado por Velloso e equipes de
outros centros no exterior têm se dedicado a tentar caracterizar a extensão do
dano cerebral causado por esse padrão de alimentação. Os pesquisadores
acreditam que o consumo contínuo e excessivo de ácidos graxos saturados leva ao
rompimento da barreira hematoencefálica em certas sub-regiões do hipotálamo.
Desorganizado esse sistema de defesa do cérebro, ocorre a inflamação crônica e
a eventual morte de neurônios do tipo Pomc. “Uma alteração pequena na barreira
pode produzir efeitos no hipotálamo, região muito sensível do cérebro”, diz o
neurologista Fernando Cendes, professor da FCM-Unicamp e coordenador do
Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e em Neurotecnologia (Brainn, na
sigla em inglês), outro Cepid. Os estudos em que se avalia o hipotálamo de
seres humanos por ressonância magnética são fruto de intensa colaboração entre
os Cepids OCRC e Brainn.
Aparentemente, o impacto de uma
dieta rica em gorduras saturadas ocorre em setores bem delimitados da base do
cérebro. Um estudo feito pela farmacêutica Albina Ramalho, que faz parte de sua
tese de doutorado a ser defendida no fim deste mês na FCM-Unicamp, encontrou
indícios de que os danos à barreira hematoencefálica induzidos pelo ganho de
peso se manifestam precocemente em uma região adjacente ao hipotálamo, a
eminência média. “Esse é o primeiro lugar em que ocorre a desorganização da
barreira”, diz Albina, que é orientada em sua pesquisa pela professora Eliana
de Araújo e por Velloso. Após terem sido submetidos por quatro semanas a uma
dieta com 30% de gordura saturada, os tanicitos, células alongadas da glia que
fazem a ligação entre o sistema nervoso central e os capilares sanguíneos da
barreira, apresentaram perda de coesão e linearidade. Em outras três regiões
cerebrais próximas à eminência média, os efeitos deletérios da dieta
hiperlipídica demoraram mais tempo para aparecer.
Há evidências de que os tanicitos
são as células responsáveis por “decidir” o que passa pela barreira. Para
reforçar a hipótese de que o consumo de alimentos com alto teor de gordura
saturada desestrutura o sistema de defesa do cérebro na região do hipotálamo,
Albina injetou também nos animais um tipo de açúcar que normalmente não
atravessa a barreira conjugado com uma substância que emite fluorescência. Nos
roedores submetidos à dieta hiperlipídica, o polissacarídeo furou a barreira e
foi encontrado na eminência média e no hipotálamo.
Gorduras saturadas, presentes em carnes vermelhas,
e do tipo trans, comuns em alimentos processados, alterariam o funcionamento
dos sensores cerebrais da fome e da saciedade
Obesidade como doença
Uma das dificuldades óbvias dos estudos sobre o impacto de dietas ricas
em gorduras no cérebro é tentar reproduzir em seres humanos os experimentos
realizados com os animais. Afinal, para averiguar os impactos no sistema
nervoso central é necessário sacrificar os camundongos ao final dos estudos e
extrair seu cérebro. Essa limitação é parcialmente contornada com o emprego de
técnicas de imagem não invasivas, como a ressonância magnética funcional, que
permite ver a ativação de certas áreas do cérebro em tempo real. Um estudo de
2011 do grupo de Velloso, também publicado na revista Diabetes, sinaliza
que o hipotálamo de indivíduos obesos mórbidos, ex-obesos (que se submeteram à
cirurgia bariátrica, de redução do estômago) e magros reage de forma distinta a
estímulos alimentares. Os magros se sentiam saciados mais rapidamente do que os
obesos depois de terem recebido glicose. “Os que fizeram a cirurgia
apresentaram um padrão intermediário de ativação do hipotálamo”, diz Velloso.
“Mas não sabemos se isso se mantém ao longo do tempo porque muitos voltam a
ganhar peso.”
O fisiologista José Donato
Junior, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, elogia os
resultados obtidos pelos colegas do Cepid OCRC. “Eles reforçam a ideia de que a
obesidade não é resultado de um simples desleixo do indivíduo”, afirma Donato
Junior, atualmente dedicado a estudar fatores de risco que levam as mulheres a
engordar. “Ela deve ser vista como uma doença.” O pesquisador da USP, no
entanto, faz algumas ressalvas. Os estudos com camundongos não podem ser
simplesmente transpostos para a realidade humana. “Ninguém come uma dieta com
30% ou 40% de gordura saturada, como a oferecida aos camundongos nos estudos”,
diz Donato Junior. “Mas essa crítica serve para os experimentos de todo mundo,
inclusive os meus. Os modelos animais aceleram e exageram os processos
metabólicos.”
As lesões no hipotálamo induzidas
pelo consumo excessivo de gorduras saturadas devem estar associadas a muitos
casos de obesidade, mas não a todos, pondera Donato Junior. A ação do
neurotransmissor dopamina, de importância capital para o funcionamento do
sistema de recompensa, pode estar por trás de uma parcela das ocorrências de
indivíduos obesos. “A pessoa pode não ter lesão alguma no hipotálamo e simplesmente
ser viciada em comer”, afirma ele.
Para o bioquímico brasileiro
Marcelo Dietrich, pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade Yale,
nos Estados Unidos, que também estuda os efeitos de dietas ricas em gorduras
saturadas nos circuitos da fome e da saciedade no hipotálamo, não é uma tarefa
simples determinar se a inflamação cerebral é causa ou consequência da
obesidade. “O hipotálamo é visto como um circuito cerebral que deu certo e está
presente em quase todos os mamíferos”, diz Dietrich. “Mas entre 7% e 10% dos
casos de obesidade infantil são de origem genética e também ativam esse mesmo
circuito.”
Ninguém dúvida de que vários
fatores podem aumentar ou diminuir o risco de se tornar obeso, como o tipo de
dieta, distúrbios metabólicos e genéticos e hábitos ligados ao estilo de vida
(fazer ou não exercício regularmente, por exemplo). Também é sabido que se
alimentar de produtos com muita gordura saturada ou trans engorda. E, como é
hoje notório, ganhar peso em excesso aumenta o risco de diabetes, problemas
cardíacos e câncer. A contribuição principal dos estudos do grupo de Velloso é
reforçar o papel que os diferentes tipos de gordura – as saturadas e as
insaturadas – parecem ter sobre o funcionamento do sistema regulador da fome,
da saciedade e do gasto de energia localizado no hipotálamo. A exemplo do que
fazem no coração, as gorduras “boas” aparentemente atenuam o dano cerebral
associado à ingestão das gorduras “ruins”. “A inflamação cerebral pode até não
ser a causa da obesidade, mas ela modula essa condição e ajuda a perpetuá-la”,
diz o neurologista Fernando Cendes.
Projeto
Centro Multidisciplinar de Pesquisa em Obesidade e Doenças Associadas (nº 2013/07607-8); Modalidade Centros de
Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Lício
Velloso (FCM-Unicamp); Investimento R$ 14.579.597,41 (para todo o
Cepid).