quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Mulheres sem corpos



Zika vírus: Biopolítica e controle dos corpos das mulheres

Categoria » Questões de Gênero
Pregnant women wait for their monthly medical test at Guatemalan Social Security maternity hospital in Guatemala City, Tuesday, Feb. 2, 2016. According to Guatemalan health authorities, the country does not have any confirmed case of pregnant women infected by Zika virus. The virus is suspected to cause microcephaly in newborn children. There is no treatment or vaccine for the mosquito-borne virus, which is in the same family of viruses as dengue. (AP Photo/Moises Castillo)








 “Sexo é para amadores, gravidez é para profissionais”, a frase do ministro da saúde, Marcelo Castro, sobre os cuidados que gestantes deveriam ter diante da epidemia do Zika Vírus é um exemplo da distância perversa entre os centros de poder e a população.

por Daniela Lima do Huffpost Brasil
A divisão hierárquica entre mulheres “profissionais” e “amadoras” que o ministro fez reflete as recomendações do Plano de Enfrentamento à Microcefalia apresentado no ano passado.

O Plano sugere que as gestantes usem repelente, roupas que não deixem braços e pernas à mostra e que evitem frequentar lugares onde haja proliferação do mosquito.

Daí se pode concluir que, segundo a biopolítica atual, ser “profissional” é assumir individualmente a responsabilidade pela prevenção do contágio.É ter condições materiais para comprar repelentes e não morar em lugares derisco. Ser “profissional” é pertencer às classes dominantes.

Foucault falou pela primeira vez em biopolítica na conferência O Nascimento da Medicina Social, realizada no Rio de Janeiro em 1974. Ressaltando que o biopoder se articula à biopolítica controlando a vida por meio da intervenção do saber e da ação do poder: é o saber a serviço do poder.

No caso do Plano, o saber médico é instrumentalizado tanto para o controle dos corpos das mulheres como para deslocar o centro do debate das ações do governo para as individuais.

Além disso, a divisão feita pelo ministro mostra que a saúde pública não pretende afastar riscos igualitariamente. É possível pensar que instituições que deveriam ser neutras reproduzem, reforçam e até constituem desigualdades sociais. Para as mulheres “amadoras”, que parecem ser abandonadas à própria sorte, o biopoder funciona não só como forma de controle, mas de exclusão e até de eliminação real.

Não se trata de questionar a importância da divulgação das medidas de prevenção, mas de denunciar as tentativas de transformar medidas paliativas em principais.

O controle dos corpos das mulheres e de seu modo de vida passou a ter centralidade nas ações de prevenção do governo. Os mecanismos de poder transformam cuidado em controle, por meio de uma lógica punitivista: aquela que não aceitar se responsabilizar individualmente pela prevenção do contágio é imediatamente culpada pelas possíveis consequências – como é o caso da microcefalia e da síndrome de guillain-barré.

Dizem para passar repelente e usar roupas grossas como forma de prevenção, mas fica muito claro que estão dizendo: se eu me infectar, a culpa é minha por não ter usado calça, por não ter passado repelente direito e por não ter ficado dentro de casa a gravidez inteira. “Eu fico apavorada, mas como posso ficar trancada o dia inteiro?” (Relato de Mariana Braz, moradora de Campo Grande – Rio de Janeiro)

Deixa-se de discutir as sucessivas epidemias de Dengue – que, assim como o Zika, é transmitida pelo mosquito Aedes aegypt – decorrentes da incapacidade do governo de estabelecer planos de prevenção e contingência.

Silencia-se sobre a importante articulação entre saneamento básico, limpeza urbana, saúde pública e pesquisa científica, reduzindo a prevenção quase que inteiramente ao conselho perverso: “mulheres, não engravidem”.

Aconselhar as mulheres a não engravidarem é partir do pressuposto cínico de que toda gravidez é planejada. Como se existisse amplo acesso aos diferentes métodos contraceptivos, como se o governo garantisse aborto seguro e como se não existissem casos de estupro no Brasil.

O Plano também fala de “medidas emergenciais”, como visitas domiciliares para a aplicação de inseticida, mas elas têm se mostrado insuficientes. E não resolvem problemas, como o acúmulo de água em imóveis fechados para a especulação imobiliária, já que a inspeção deve ser feita na presença do proprietário ou do responsável pelo imóvel. Já são 3.893 casos de microcefalia e 49 mortes por malformação.

Mariana está com 16 semanas de gestação e mora na Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde as epidemias de Dengue são anuais. Mesmo assim, não existe nenhum tipo de medida preventiva: “não vejo ação nenhuma do governo aqui, não vejo ninguém limpando terreno baldio, não vejo ninguém vindo aqui na minha casa botar inseticida no ralo, a gente mesmo é que tem que se virar e fazer o que acha certo”.

O biopoder enfrenta o Zika com um frágil conjunto de medidas de prevenção fundadas em interesses econômicos e políticos.

Medidas que enrijecem em normas de comportamento ineficazes, desumanas e que operam divisões hierárquicas da vida. É um jogo de terror e de transferência de responsabilidade para quem está em situação mais vulnerável.

Em última instância, o biopoder decide quem deixa morrer e quem faz viver. E sabemos quem são as primeiras a morrer.

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