segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Obesidade e seu combate



Uma gordura contra a obesidade
Ácidos graxos insaturados, como o ômega 3, promovem o nascimento de neurônios e talvez possam reverter danos ao cérebro de obesos
MARCOS PIVETTA | ED. 240 | FEVEREIRO 2016




 Salmão e linhaça: alimentos ricos em gorduras insaturadas, como ômega 3, parecem combater inflamação cerebral associada ao ganho de peso

As reações do corpo humano à ingestão de dietas ricas em gorduras são complexas e marcadas por aspectos positivos e negativos. O coração é provavelmente o órgão em que os potenciais malefícios e benefícios dessa relação dual são mais conhecidos. Alguns tipos de ácidos graxos tendem a se depositar nos tecidos, elevar a pressão arterial e aumentar os riscos de problemas cardíacos. Esse é o caso das gorduras saturadas, encontradas na carne vermelha, em aves e derivados do leite integral, e das trans, produzidas a partir da modificação de óleos vegetais e usadas em grande parte dos alimentos processados industrialmente. Já outras formas de gordura, como as insaturadas, parecem contribuir para manter baixos os níveis de colesterol e da pressão e relativamente limpos os vasos sanguíneos. Nas últimas duas décadas, uma relação igualmente intrincada com os diferentes tipos de gordura começou a ser esmiuçada em outro órgão vital – o cérebro.

Novos estudos têm levantado indícios de que a obesidade, marcada geralmente por um consumo excessivo de gorduras saturadas e trans como parte de hábitos alimentares e de um estilo de vida pouco saudáveis, produziria uma inflamação contínua no hipotálamo. Os danos a essa região, que fica na base do cérebro e funciona como um sensor de nutrientes, levariam à morte dos neurônios responsáveis por controlar as sensações de fome e de saciedade e o gasto de energia. Assim, o mau funcionamento dos circuitos que regulam o comportamento alimentar – o indivíduo sente fome logo depois de uma farta refeição – contribuiria para perpetuar o ganho de peso. Esse é um dos efeitos deletérios possivelmente ocasionados pelo acúmulo de gorduras saturadas no sistema nervoso central. Um trabalho recente do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC, na sigla em inglês), um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, sinaliza que o dano cerebral em animais obesos, alimentados com dietas ricas em gorduras saturadas, poderia ser parcialmente revertido por meio do consumo de alimentos ou compostos ricos em outro tipo de gordura, as insaturadas, basicamente as mesmas que são benéficas ao coração.

Pesquisadores do OCRC deram, de duas maneiras distintas, ácidos graxos insaturados da família dos ômega 3 para camundongos obesos e constataram a formação de novos neurônios no hipotálamo. Para um grupo de roedores, forneceram uma dieta rica em ômega 3, presente em grandes quantidades em algas, em peixes de água fria, como salmão e atum, e na linhaça. Para outro, injetaram ácido docosa-hexaenoico (DHA), ácido graxo poli-insaturado da família dos ômega 3, diretamente no hipotálamo. Um terceiro grupo recebeu apenas uma solução salina em sua dieta.

Oito semanas mais tarde, constataram o surgimento no hipotálamo de neurônios do tipo Pomc, que modulam a sensação de saciedade, nos roedores que se alimentaram de comida rica em ômega 3 e nos que receberam doses de DHA. O grupo de controle não apresentou formação de novos neurônios. “Esse é o primeiro trabalho que mostra neurogênese no hipotálamo induzida por um nutriente alimentar, como a dieta rica em ômega 3”, afirma o médico Lício Velloso, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), coordenador do centro e do estudo com os animais. “Talvez as gorduras insaturadas possam ser uma forma de minimizar a morte de neurônios causada pela inflamação do cérebro associada à obesidade.” O estudo foi publicado na revista científica norte-americana Diabetes em 28 de outubro de 2015.
Os pesquisadores conseguem identificar os novos neurônios, cuja formação foi estimulada pela dieta rica em ômega 3, entre os que já existiam no cérebro dos roedores porque usam um marcador celular para diferenciá-los. Eles administram nos animais um marcador de proliferação celular denominado BrdU, um nucleosídeo (uma base nitrogenada ligada a um açúcar) sintético análogo à timidina, que pode ser conjugado com um anticorpo fluorescente. Durante a síntese de DNA, o BrdU toma o lugar da timidina e se insere no material genético quando novas células são geradas. Dessa forma, o composto é uma ferramenta molecular útil para averiguar se há nascimento de neurônios no cérebro.

No experimento feito no OCRC, os pesquisadores geraram imagens da região do hipotálamo dos camundongos obesos obtidas por microscopia confocal. Nos animais em que não houve neurogênese, apareceram apenas células da cor vermelha, que representam os neurônios Pomc que já existiam nos roedores. Nos que produziram novos neurônios induzidos pela dieta rica em DHA, surgiram também pontos em verde, novas células nervosas marcadas pelo composto BrdU. “Avaliamos outras regiões do cérebro e a neurogênese estimulada pelo ômega 3 parece ocorrer predominantemente em certas áreas do hipotálamo”, diz o biólogo Lucas Nascimento, primeiro autor do estudo, que defendeu sua tese de doutorado sobre o tema no ano passado na Unicamp (atualmente ele faz estágio de pós-doutorado no Helmholtz Zentrum, na Alemanha). Os pesquisadores do Cepid também encontraram indícios de que o DHA estimularia a neurogênese ao interagir com duas proteínas, o fator de crescimento derivado do cérebro (BDNF) e o receptor de ácidos graxos GPR40. Quando inibiram a ação dessas duas proteínas no hipotálamo, a formação de novos neurônios diminuiu.


Barreira entre o cérebro e o sangue

As gorduras parecem exercer efeitos positivos ou negativos diretamente em certas regiões do cérebro porque, em mais situações do que se supunha, conseguem atravessar a barreira hematoencefálica. Esse é o nome dado ao sistema de proteção que evita a entrada no cérebro de substâncias consideradas exógenas ou potencialmente perigosas presentes no sangue. A barreira é semipermeável, deixa passar algumas substâncias e bloqueia outras, e reveste todos os vasos sanguíneos do cérebro. É formada por células endoteliais, cujas junções (o espaço existente entre duas células contíguas) são extremamente justas e reforçadas por astrócitos, células do cérebro com propriedades de suporte, 10 vezes mais abundantes do que os neurônios. Como regra geral, os estudiosos sempre pensaram que as gorduras do sangue não passavam pela barreira.

Mas essa percepção mudou nos últimos 10 anos. Em 2005, um artigo assinado por Velloso e colegas da Unicamp e da Universidade de São Paulo (USP), publicado na revista Endocrinology, foi um dos primeiros a sugerir que camundongos obesos apresentavam uma inflamação persistente no hipotálamo e desenvolviam resistência à insulina e à leptina, condições que abrem caminho para a ocorrência do diabetes. “Os neurônios dos animais que comeram uma dieta rica em gordura saturada paravam de responder a esses hormônios depois de algumas semanas”, afirma Velloso. A insulina é responsável por carregar a glicose para o interior das células, onde o açúcar é transformado em energia essencial à vida. A leptina induz a saciedade.

Essas alterações no hipotálamo são suficientes para criar um quadro que favoreceria a manutenção da obesidade e o surgimento de distúrbios geralmente associados ao ganho de peso, como o diabetes e os problemas cardíacos – e a raiz desse mau funcionamento seria a morte de neurônios provocada pela adoção permanente de dietas ricas em gorduras saturadas.


Extensão do dano cerebral

Em trabalhos mais recentes, o grupo coordenado por Velloso e equipes de outros centros no exterior têm se dedicado a tentar caracterizar a extensão do dano cerebral causado por esse padrão de alimentação. Os pesquisadores acreditam que o consumo contínuo e excessivo de ácidos graxos saturados leva ao rompimento da barreira hematoencefálica em certas sub-regiões do hipotálamo. Desorganizado esse sistema de defesa do cérebro, ocorre a inflamação crônica e a eventual morte de neurônios do tipo Pomc. “Uma alteração pequena na barreira pode produzir efeitos no hipotálamo, região muito sensível do cérebro”, diz o neurologista Fernando Cendes, professor da FCM-Unicamp e coordenador do Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e em Neurotecnologia (Brainn, na sigla em inglês), outro Cepid. Os estudos em que se avalia o hipotálamo de seres humanos por ressonância magnética são fruto de intensa colaboração entre os Cepids OCRC e Brainn.

Aparentemente, o impacto de uma dieta rica em gorduras saturadas ocorre em setores bem delimitados da base do cérebro. Um estudo feito pela farmacêutica Albina Ramalho, que faz parte de sua tese de doutorado a ser defendida no fim deste mês na FCM-Unicamp, encontrou indícios de que os danos à barreira hematoencefálica induzidos pelo ganho de peso se manifestam precocemente em uma região adjacente ao hipotálamo, a eminência média. “Esse é o primeiro lugar em que ocorre a desorganização da barreira”, diz Albina, que é orientada em sua pesquisa pela professora Eliana de Araújo e por Velloso. Após terem sido submetidos por quatro semanas a uma dieta com 30% de gordura saturada, os tanicitos, células alongadas da glia que fazem a ligação entre o sistema nervoso central e os capilares sanguíneos da barreira, apresentaram perda de coesão e linearidade. Em outras três regiões cerebrais próximas à eminência média, os efeitos deletérios da dieta hiperlipídica demoraram mais tempo para aparecer.

Há evidências de que os tanicitos são as células responsáveis por “decidir” o que passa pela barreira. Para reforçar a hipótese de que o consumo de alimentos com alto teor de gordura saturada desestrutura o sistema de defesa do cérebro na região do hipotálamo, Albina injetou também nos animais um tipo de açúcar que normalmente não atravessa a barreira conjugado com uma substância que emite fluorescência. Nos roedores submetidos à dieta hiperlipídica, o polissacarídeo furou a barreira e foi encontrado na eminência média e no hipotálamo.

 Gorduras saturadas, presentes em carnes vermelhas, e do tipo trans, comuns em alimentos processados, alterariam o funcionamento dos sensores cerebrais da fome e da saciedade

Obesidade como doença

Uma das dificuldades óbvias dos estudos sobre o impacto de dietas ricas em gorduras no cérebro é tentar reproduzir em seres humanos os experimentos realizados com os animais. Afinal, para averiguar os impactos no sistema nervoso central é necessário sacrificar os camundongos ao final dos estudos e extrair seu cérebro. Essa limitação é parcialmente contornada com o emprego de técnicas de imagem não invasivas, como a ressonância magnética funcional, que permite ver a ativação de certas áreas do cérebro em tempo real. Um estudo de 2011 do grupo de Velloso, também publicado na revista Diabetes, sinaliza que o hipotálamo de indivíduos obesos mórbidos, ex-obesos (que se submeteram à cirurgia bariátrica, de redução do estômago) e magros reage de forma distinta a estímulos alimentares. Os magros se sentiam saciados mais rapidamente do que os obesos depois de terem recebido glicose. “Os que fizeram a cirurgia apresentaram um padrão intermediário de ativação do hipotálamo”, diz Velloso. “Mas não sabemos se isso se mantém ao longo do tempo porque muitos voltam a ganhar peso.”

O fisiologista José Donato Junior, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, elogia os resultados obtidos pelos colegas do Cepid OCRC. “Eles reforçam a ideia de que a obesidade não é resultado de um simples desleixo do indivíduo”, afirma Donato Junior, atualmente dedicado a estudar fatores de risco que levam as mulheres a engordar. “Ela deve ser vista como uma doença.” O pesquisador da USP, no entanto, faz algumas ressalvas. Os estudos com camundongos não podem ser simplesmente transpostos para a realidade humana. “Ninguém come uma dieta com 30% ou 40% de gordura saturada, como a oferecida aos camundongos nos estudos”, diz Donato Junior. “Mas essa crítica serve para os experimentos de todo mundo, inclusive os meus. Os modelos animais aceleram e exageram os processos metabólicos.”

As lesões no hipotálamo induzidas pelo consumo excessivo de gorduras saturadas devem estar associadas a muitos casos de obesidade, mas não a todos, pondera Donato Junior. A ação do neurotransmissor dopamina, de importância capital para o funcionamento do sistema de recompensa, pode estar por trás de uma parcela das ocorrências de indivíduos obesos. “A pessoa pode não ter lesão alguma no hipotálamo e simplesmente ser viciada em comer”, afirma ele.

Para o bioquímico brasileiro Marcelo Dietrich, pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade Yale, nos Estados Unidos, que também estuda os efeitos de dietas ricas em gorduras saturadas nos circuitos da fome e da saciedade no hipotálamo, não é uma tarefa simples determinar se a inflamação cerebral é causa ou consequência da obesidade. “O hipotálamo é visto como um circuito cerebral que deu certo e está presente em quase todos os mamíferos”, diz Dietrich. “Mas entre 7% e 10% dos casos de obesidade infantil são de origem genética e também ativam esse mesmo circuito.”

Ninguém dúvida de que vários fatores podem aumentar ou diminuir o risco de se tornar obeso, como o tipo de dieta, distúrbios metabólicos e genéticos e hábitos ligados ao estilo de vida (fazer ou não exercício regularmente, por exemplo). Também é sabido que se alimentar de produtos com muita gordura saturada ou trans engorda. E, como é hoje notório, ganhar peso em excesso aumenta o risco de diabetes, problemas cardíacos e câncer. A contribuição principal dos estudos do grupo de Velloso é reforçar o papel que os diferentes tipos de gordura – as saturadas e as insaturadas – parecem ter sobre o funcionamento do sistema regulador da fome, da saciedade e do gasto de energia localizado no hipotálamo. A exemplo do que fazem no coração, as gorduras “boas” aparentemente atenuam o dano cerebral associado à ingestão das gorduras “ruins”. “A inflamação cerebral pode até não ser a causa da obesidade, mas ela modula essa condição e ajuda a perpetuá-la”, diz o neurologista Fernando Cendes.

Projeto
Centro Multidisciplinar de Pesquisa em Obesidade e Doenças Associadas (nº 2013/07607-8); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Lício Velloso (FCM-Unicamp); Investimento R$ 14.579.597,41 (para todo o Cepid).

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