A fome do
câncer
IGOR
ZOLNERKEVIC | ED. 239 | JANEIRO 2016
Rede emaranhada: imagem de microscopia de vasos
sanguíneos de um tumor de intestino
Uma equipe internacional de
biofísicos liderada pelo brasileiro José Onuchic, da Universidade Rice, Estados
Unidos, desenvolveu um modelo matemático que explica em detalhe como as células
da parede dos vasos sanguíneos respondem à necessidade de nutrientes de um
tumor em crescimento. Caso as previsões do modelo sejam confirmadas, suas
equações matemáticas podem ajudar os pesquisadores a buscarem compostos mais
efetivos, que impeçam a formação dos vasos sanguíneos que alimentam o tumor sem
interferir nos do restante do corpo.
As células tumorais, assim como
as demais células do organismo, precisam do oxigênio e dos nutrientes
carregados pelo sangue para sobreviver e se multiplicar. Quando as células de
um tecido sadio necessitam de sangue extra, elas secretam substâncias químicas
que estimulam o desenvolvimento de novos vasos. A principal dessas substâncias
é o fator de crescimento endotelial vascular, mais conhecido pela sigla em
inglês VEGF. Ao chegar à parede do vaso sanguíneo mais próximo, as moléculas de
VEGF estimulam novos vasos a brotarem do existente e crescerem em direção às
células que emitiram o sinal.
Tumores em crescimento fazem algo
semelhante. A diferença está na quantidade de VEGF que produzem. Se o sinal
emitido pelos tecidos normais representa, digamos, um pedido feito com
gentileza, o das células cancerosas é um grito de urgência. Esse sinal mais
intenso ordena às células de vasos próximos que se multipliquem rapidamente
rumo ao tumor. No lugar de uma rede harmônica de vasos sanguíneos, com
estrutura ordenada e de crescimento lento, na qual vasos pequenos brotam de
vasos maiores, forma-se uma rede de numerosos vasos raquíticos, que crescem às
pressas para alimentar as células cancerígenas.
“Como as células do câncer
crescem muito rápido, elas necessitam de muito oxigênio e emitem um sinal de
VEGF que promove a formação caótica de vasos”, explica o biofísico brasileiro
Marcelo Boareto, primeiro autor do artigo descrevendo o modelo, publicado em
julho de 2015 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences
(PNAS). Atualmente em um estágio de pós-doutorado no Instituto Federal
Suíço de Tecnologia (ETH), Boareto desenvolveu o modelo de crescimento dos
vasos sanguíneos em parceria com Mohit Kumar Jolly, da Universidade Rice. No
modelo, Boareto aplicou as conclusões de seu doutorado, feito sob a orientação
de Onuchic e Eshel Ben-Jacob, biofísico da Rice e também da Universidade de Tel
Aviv, em Israel. “Esse tipo de pesquisa mostra que atualmente os avanços em
ciência médica requerem muitas vezes a integração da teoria com a realização de
experimentos”, afirma Onuchic.
Morto em junho de 2015, Ben-Jacob
foi pioneiro na criação de modelos matemáticos para tentar entender como as
células – formando uma colônia de bactérias, um tecido sadio ou um tumor – se
comunicam umas com as outras por meio de sinais químicos. Seus modelos, feitos
em parceria com o biofísico Herbert Levine, também da Rice, explicam por que
células quase idênticas geneticamente podem se comportar de maneira muito
diferente, dependendo dos sinais que recebem de suas vizinhas.
Essa conversa química entre
células é importante, por exemplo, durante o desenvolvimento de um embrião.
“Para formar um organismo multicelular a partir de um aglomerado de células
idênticas, as células precisam se multiplicar e se diferenciar”, explica
Boareto. “Curiosamente, a maioria das transformações ocorridas nas células
durante o desenvolvimento embrionário é coordenada por uns poucos sistemas de sinalização.”
Um deles é o sistema notch,
essencial ao desenvolvimento e à manutenção de diversos tecidos do corpo
humano, entre eles, o vascular. O sistema funciona da seguinte maneira: as
células da parede dos vasos possuem em sua membrana uma proteína chamada notch
(entalhe, em português). Parte dessa proteína fica fora da célula e pode se
conectar a duas proteínas: a delta e a jagged (denteado).
Intercaladas
ou agrupadas
Em um artigo publicado em
fevereiro do ano passado, Boareto, Jolly, Ben-Jacob e Onuchic explicaram pela
primeira vez, por meio de um sistema de equações matemáticas, como o sistema notch
atua na diferenciação celular de um tecido qualquer. Em experimentos feitos nos
últimos anos, outros pesquisadores já haviam demonstrado que nos tecidos ricos
em proteína delta as células, em consequência de um sinal chamado
inibição lateral, se dispõem como em tabuleiro de xadrez: células com proteínas
delta em sua superfície se intercalam com células contendo proteínas notch.
Já nos tecidos com abundância de jagged prevalece uma forma de
sinalização chamada indução lateral, que deixa as células vizinhas muito
parecidas, apresentando em sua superfície tanto as proteínas jagged
quanto as notch.
Nos tecidos sadios, a necessidade
de suprimento é sinalizada pela proteína VEGF, que aciona tanto a inibição como
a indução lateral. Em equilíbrio, essas duas formas de sinalização permitem a
formação de vasos sanguíneos robustos. A inibição lateral leva ao surgimento
das células tip (extremidade), que guiam o crescimento dos vasos,
enquanto a indução lateral origina as células stalk (haste), formadoras
da parede do vaso. “A célula tip é capaz de se locomover em direção à
fonte de VEGF e lidera a formação de um novo vaso, já as células stalk,
imóveis, multiplicam-se e formam a parede do novo vaso”, explica Boareto.
Vasos raquíticos
Quando decidiram testar o modelo,
Boareto e seus colaboradores imaginavam que o crescimento acelerado dos vasos
sanguíneos fosse consequência da produção excessiva da proteína delta,
que favoreceria o surgimento de um número elevado de células tip. Mas
experimentos realizados em 2007 e 2009 indicavam uma contradição. Ao desativar o
gene responsável pela produção da proteína delta, passou a ocorrer o
crescimento de muitos vasos sanguíneos, bem próximos uns dos outros, como
acontece na vizinhança de um tumor. “Os resultados experimentais nos deixaram
surpresos”, conta Boareto.
Diferentemente do que se pensava,
o sinal de VEGF emitido pelos tumores, combinado com sinais como os da
inflamação, parece suprimir a produção da proteína delta e aumentar a
síntese de jagged, fazendo as células formadoras da parede dos vasos
proliferarem.
Jolly e Boareto analisaram com
cuidado as equações de seu modelo até entenderem como conciliar o que sabiam
sobre o sistema de sinalização notch com os resultados das experiências
usando vasos sanguíneos. A solução que encontraram foi assumir que os vasos
raquíticos que alimentam os tumores não são como os vasos normais, constituídos
de uma célula tip, seguida por várias stalk.
Os pesquisadores sugerem que
esses vasos devem ser feitos de células híbridas, com propriedades
intermediárias entre as tip e as stalk: não tão móveis quanto as
primeiras, nem tão capazes de se multiplicar quanto as últimas (ver infográfico). “Nossa hipótese é que o
excesso de jagged produz células híbridas, que formam muitos vasos
finos, pouco maduros e pouco eficientes”, diz Boareto. “O câncer parece se
aproveitar de mecanismos já existentes, necessários para a sobrevivência das
células sadias, adaptando-os às suas necessidades”, conta Onuchic.
Para testar essa hipótese e
validar o modelo, Boareto explica que serão necessárias experiências que
monitorem como as células de um vaso sanguíneo com excesso de jagged
respondem à sinalização de VEGF. “É uma previsão fácil de ser testada”, afirma.
“Estamos conversando com grupos experimentais.”
A hipótese a ser confirmada pode
levar a uma nova maneira de controlar a formação de vasos sanguíneos ao redor
de tumores. Os compostos antiangiogênese disponíveis hoje bloqueiam a
proliferação de vasos sanguíneos ao obstruir o funcionamento das proteínas notch.
O problema é que, assim, esses medicamentos impedem a formação de vasos
sanguíneos próximo ao tumor e também no restante do corpo, o que pode debilitar
ainda mais a saúde de quem tem câncer. O modelo de Boareto e seus colegas abre
caminho para uma estratégia distinta: usar um composto que amplifique ainda
mais o sinal de VEGF do tumor. Se funcionar como o esperado, esse sinal
estimularia uma produção ainda maior de proteínas jagged e a criação de
mais vasos. A expectativa, no entanto, é de que sejam vasos excessivamente
finos, incapazes de conduzir sangue para o tumor.
“São predições empolgantes, ainda
aguardando validação experimental”, comentaram por e-mail os
pesquisadores brasileiros Renata Pasqualini e Wadih Arap, da Escola de Medicina
da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos. Eles dirigem um laboratório
que é referência internacional na busca de novos tratamentos para diversas
doenças, explorando diferenças entre as proteínas de vasos sanguíneos sadios e
doentes (ver Pesquisa FAPESP nº
190). Para o casal, o novo modelo pode orientar o desenvolvimento
de fármacos que atuem na formação anormal de vasos sanguíneos observada não só
em tumores, mas também na artrite e em doenças associadas a problemas na
retina.
Artigos científicos
BOARETO, M. et al. Jagged mediates differences in normal and tumor angiogenesis by affecting tip-stalk fate decision. PNAS. 21 jul. 2015.
BOARETO, M. et al. Jagged-Delta asymmetry in Notch signaling can give rise to a Sender/Receiver hybrid phenotype. PNAS. 3 fev. 2015.
BOARETO, M. et al. Jagged mediates differences in normal and tumor angiogenesis by affecting tip-stalk fate decision. PNAS. 21 jul. 2015.
BOARETO, M. et al. Jagged-Delta asymmetry in Notch signaling can give rise to a Sender/Receiver hybrid phenotype. PNAS. 3 fev. 2015.
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